quinta-feira, 10 de maio de 2012

Próximo do Fim

Gabriela afastou-se do espelho, pousou o cigarro no cinzeiro, olhou-o de frente e, angustiadamente, disse:
- Gosto muito de ti, João, mas vou deixar-te.
Ele passou a mão pelo rosto magro, abanou a cabeça e respondeu:
- Há muito tempo que eu sabia que isto havia de acontecer. Não me vou rebaixar, não vou mendigar o amor que já não sentes por mim. Ou que nunca sentiste...
Ela não o deixou continuar:
- Por favor, João, nada de cenas. Sabes bem que não tenho pachorra para melodramas. Isto também é difícil para mim. Mas acho que já somos suficientemente crescidos para podermos resolver tudo como gente civilizada.
- Se calhar - disse ele, com uma voz cada vez mais enfraquecida, - o problema tem mesmo a ver com  "civilização". Tenho-me perguntado, nos últimos tempos, o que falhou entre nós. Serão os nossos mundos tão diferentes que não poderão nunca conciliar-se?
Calou-se, tentou disfarçar as mãos trémulas. Depois continuou:
- Nunca fui capaz de perceber a tua instabilidade emocional. Mas sei que sempre sentiste o meu amor como uma espécie de prisão. Acho mesmo que foi quando o meu desejo de ter um filho se tornou mais insistente, que comecei a perder-te. Eu queria-te para sempre. Para ti, passada a curiosidade inicial, satisfeita a vontade de me teres, pouco mais sobrou, e o que quer que tenha sobrado foi morrendo aos poucos.
- Desculpa lá, João, mas nada disso vem agora ao caso. Estou a tentar ser prática. Não vamos fazer balanços de tudo o que houve entre nós. Não vamos magoar-nos mais. Não vês que eu também gosto de ti, meu tonto? Terei sempre por ti ternura suficiente para não querer fazer-te mal. O que eu acho é que nós dois já não fazemos sentido juntos, deixámos de ter o que dizer um ao outro. Lembras-te daquele poema do Eugénio: "Já gastámos as palavras pela rua, meu amor/ e o que nos ficou não chega/para afastar o frio de quatro paredes"? É assim que eu me sinto, João. E, se queres saber, o que desgastou a nossa história foi o teu ciúme, a tua insegurança, as desconfianças permanentes. Se se pode falar de culpa, aquilo de que posso acusar-te é de me teres amado demais. Não me deste espaço suficiente para eu poder respirar sozinha. Não podes querer que eu seja como tu gostarias que eu fosse.
- Por favor, Gabriela, tudo isso soa a falso. O amor nunca é demasiado. Quando se gosta de alguém gosta-se sempre muito, com o corpo e com a alma, com o coração e com a cabeça.
João tentou que ela não percebesse a sua comoção, mas não pode impedir-se de deixar transparecer nas suas palavras a tristeza e o desamparo.
Ainda tentou acrescentar:
- Não consigo imaginar-nos a fazer o deve e o haver da nossa história de amor, a dividir as coisas: os livros são para ti, os discos são para mim, os pratos são teus, podes levar as prendas que te dei... E com quem ficam todas as coisas boas e más que passámos juntos e não podemos partir ao meio?
Escondeu a cara, envergonhado com a sua fraqueza.
Gabriela pegou no maço de cigarros, saiu e bateu a porta, sem violência, mas com força suficiente para o fazer estremecer.
Abriu os olhos e, por momentos, ficou parado no escuro, procurando saber onde estava. Devagar, foi-se então apercebendo das paredes, dos lençóis. Esticou um pé e sentiu um corpo adormecido ao seu lado. Passou um braço por cima daquele corpo que conhecia de cor, deu-lhe o mais doce e demorado dos beijos, deixou que ela se aninhasse nos seus braços e disse suavemente:
- Gosto tanto de te ter aqui comigo, Gabriela!

Isabel Mouzinho

Este  texto é já um pouco antigo. Na época só uma pessoa o leu: Urbano Tavares Rodrigues.
E disse-me: "É um conto perfeito. Tem sensibilidade, imaginação psicológica, uma ponta de ironia, qualidade de escrita". Ainda assim guardei-o no fundo escuro da gaveta e só agora o recupero  para a semi-claridade do blog...

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