quinta-feira, 25 de julho de 2013

Do avesso



Sabia que aqueles eram tempos de mudança. Nem que fosse de maneira intuitiva, percebia com clareza que em si e na sua vida tudo se tornara muito diferente, dando força à ideia que  lhe fora tão difícil entender e aceitar, de que tudo tem um fim e a vida não volta atrás.
Mesmo se às vezes a saudade ainda lhe doía, as lembrança boas lhe ensombravam algumas horas dos dias e uma mistura difusa de culpa, tristeza, nostalgia e desencanto se apoderava do seu ânimo. Mesmo se a incerteza do que viria depois a fazia hesitar e ter dúvidas sobre tantas coisas, ora deixando-se levar pelo coração, sem pensar, ora não querendo coisa nenhuma e caminhando  simplesmente, sem certezas nem quereres, confiando em si e na sua força, amando a sua liberdade, que lhe parecia ainda maior que antes, ou, até, sonhando outras vidas e novos começos.
O calor não ajudava a serenar o corpo e a sossegar o coração, que nalgumas noites se lhe adiantava,  indomado e inquieto, destapando vontades e desatando aquele fogo que, às vezes, até parecia  queimar pelo lado de dentro. E depois havia também as outras noites,  as que se viviam  em solidão e desalento desmedidos, que a levavam a assumir todas as suas fragilidades e temores, a contemplar as estrelas em silêncio e a percorrer imagens que nem sabia se eram reais ou se existiam apenas no universo onírico em que se sentia enredada, absorta num mundo novo de possibilidades infinitas, que ansiava e temia em proporções iguais, que queria tanto e se recusava a aceitar, feito de desejos prementes e vontades inconfessadas e incertas, mas cada vez mais acesas.  
A existência parecia-lhe envolta em brumas  que não a deixavam ver com absoluta nitidez, em ventos que a empurravam em várias direcções,  em terrenos pouco sólidos, feitos de areia fina, onde é tão fácil enganar-se no caminho, perder-se e soçobrar. Sabia que a razoabilidade lhe pedia paciência, esperas, deixar o tempo e a vida correr. Sabia muito bem que querer é deixar ir, prender e soltar.
Mas sabia também das alturas em que era como se o mundo inteiro acabasse nela  e no que lhe explodia no peito, um turbilhão de emoções contidas que se soltam de repente,  na urgência de se revelar.
E então pensava em bocas que lhe aliviassem a sede, em mãos que lhe percorressem o corpo, acalmando o desejo e protegendo-a de todos os perigos e medos; e em olhos  perdidos no fundo de outros olhos, em risos e vozes e cheiros e em beijos demorados, que tantas vezes imaginava a que saberiam e que não se cansava de querer, no silêncio dos seus pensamentos. E nos abraços de uns braços fortes e bons à volta do corpo, num colo onde pudesse deitar a cabeça e sentir-se protegida e aconchegada. E deixar-se ficar assim, envoltos no mesmo abraço sem palavras, na entrega sem pressa do início do amor,  com o tempo suspenso, a novidade de uma vida nova e uma espécie de inexplicável superstição de nenhum se atrever a afastar-se do outro antes da luz de um novo dia se deixar antever ao longe.
E queria ficar muito tempo naquele feitiço paralisante em que tudo podia parecer tão perfeito e diferente da realidade quotidiana, perdida em mil devaneios, nos  desvarios de mundos cruzados e vontades indizíveis que às vezes era preciso levar um dedo até aos lábios para indicar que se mantivessem assim. E torná-lo verdade.  E repeti-lo muitas vezes, na serenidade e na paz de vontades em sintonia. 
Convencia-se que a vida é feita de incertezas, mistura de sonho e realidade e vontades insensatas, como as que lhe enchiam o espírito no torpor sonolento que o calor das noites de Verão embalava, como uns braços onde sabe bem ficar, em  evidente antecipação do paraíso. E vinha a certeza que o amor emociona tanto que pode valer a vida. E que chegaria de novo à sua, em todo o seu esplendor, se não estivesse já ali, ocultando-se na desigualdade dos dias e revelando-se nos momentos  em que se virava do avesso.

(Fotografia de Paulo Abreu e Lima)

4 comentários:

  1. E como gostei de a ler, Isabel. Acho que é esta mistura que existe na blogosfera que me atrai. Uns têm uma escrita corrosiva e outros possuem uma escrita que nos embala. Nos tranquiliza. Gostei muito.

    Beijinho.

    PS. As fotos do Paulo Abreu e Lima são de facto muito bonitas. Não sei se viu uma foto publicada ontem - penso - no blogue do mfc/pé de meia de Piodão. Simplesmente espectacular. Ainda pensei pedir autorização para a colocar uns tempos no meu canto, mas entretanto desisti da ideia.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigada, Maria! Hesito sempre um pouco em publicar estes posts em que se me escancara mais a alma, mas depois penso que tudo isto é em simultâneo um gosto e uma necessidade, que é bom racionalizar e até partilhar, mesmo parcialmente, o que às vezes é grande demais para caber inteiro dentro do peito.

      As fotografias do Paulo são muito mais que bonitas. São deslumbrantes! E ele é suficientemente querido e generoso para me deixar usá-las aqui, (indicando naturalmente a autoria - era o que mais faltava! - nunca poderia ser de outra maneira) o que é para mim uma honra e um orgulho e ajuda a tornar o meu blog mais bonito... (E até confesso que só por vergonha não o faço ainda mais vezes).
      Sim, vi a fotografia do Piódão, do mfc, no seu fantástico Pé-de-Meia. Lindíssima, de facto. Fico cheia de vontade de ir até lá um dia ;)

      Beijinho
      (Também visito muitas vezes o "seu canto", embora nem sempre me "mostre"...)

      Eliminar
  2. Isabel, faça do SEU blogue o que bem lhe apetecer. Por mim, prefiro estas suas descidas ao âmago indelével à insana realidade quotidiana, não duvide.

    (este ano ainda não vi um céu vermelho ao entardecer, não percebo...)

    Beijinho :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não duvido, claro que não, acredito completamente. Vou seguindo o coração, como sempre...

      (também não vi, Paulo, o céu assim, do "tio Luís" - ...adoro! ;)

      Obrigada. Por tudo, incluindo a fotografia...
      Beijinho :)

      Eliminar