quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Como um poema


(Une photo est surprenante lorsque l'on ne sait pas pourquoi elle a été prise  - Roland Barthes)
                                                                                                                      
A propósito do que tenho andado a ouvir ultimamente sobre a literatura, e sobre o romance em particular, pus-me a pensar no que aproxima a escrita e a fotografia, duas coisas de que tanto gosto, embora numa como noutra me situe, por respeito e sensatez, sobretudo do lado da recepção. 
Dir-se-ia que o romance está mais próximo do cinema e a poesia da fotografia, pois se é verdade que quando leio um romance consigo "ver" aquilo de que se fala, imaginá-lo e  vivê-lo dentro da minha cabeça, porque a literatura tem essa capacidade de, através da linguagem, construir um sistema de representação do mundo que, de repente,  se me põe diante dos olhos e, tal como no cinema, há "imagens que passam no meu écran interior", que me transportam para um outro tempo e me fazem conhecer novas realidades, a poesia capta muito mais o instante e, nesse sentido, também a fotografia é  a tentativa de apreender a realidade, de a deter na sua temporalidade evanescente. E a escolha de um determinado ângulo, luz, aproximação, implica um arrebatamento individual que exprime um rasgo emotivo e traduz um estado de alma, uma experiência pessoal, um momento único, irrepetível, cuja efemeridade se quer contrariar e fazer perdurar.
Há, de facto, certas fotografias que nos emocionam como um poema e isso virá talvez da sua dimensão artística, capaz de  tocar o que há de mais fundo e indizível em nós.  Tal como na leitura, quem vê uma fotografia  acrescenta-lhe alguma coisa que tem a ver com o seu sentimento e sensibilidade, numa relação de afecto que é sempre, também, uma escolha emocionada. 
Vejamos este exemplo: já não sei quantas veze vi a Place des Vosges, que é de resto um dos meus lugares preferidos de Paris. E, no entanto, nunca a pude ver assim, como a vejo aqui, através de outros olhos, na singularidade deste instante que uma outra sensibilidade, que me é alheia, captou desta maneira. Neste caso pouco me interessa que esta praça seja a antiga Place Royale, ou a sua história e demais detalhes. Ou o que sentiu e viveu quem fotografou este momento, neste dia e hora, que eu não sei qual é. Nem importa. Porque é a sua harmonia e placidez que retenho. E a paz que me transmite. E o que isso acrescenta ao que este lugar é para mim. E então é como se me visse ali outra vez, maravilhada pelas mil e uma coisas que eu sei e as que a imagem me traz de novo e engrandece, numa mistura perfeita de ilusão e realidade que quase me permite sentir a frescura macia da relva e a luz cálida do sol. 
É ou não é magnífica a magia que nos leva a essa espécie de paraíso onde os nossos olhos se demoram e o tempo se suspende, com tudo o  que há nisto de único e de original, uma construção que não é a vida, não é a realidade, mas se apoia nela e a interpreta de um modo peculiar, no permanente dinamismo entre produção e recepção que é também essa ambiguidade onde todos os entendimentos e todos os sonhos são possíveis?
(Fotografia de Paulo Abreu e Lima)

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