sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Arrumar o passado

 
Agora já quase não doía. Já  não  estranhava a ausência, a distância e o silêncio cada vez maiores; já não morria de desgosto, já não havia lugar para lamentos, nem lágrimas, nem arrependimento, nem culpa, sequer.
Agora sabia simplesmente que até os grandes amores perdem intensidade e veemência; que mesmo os que parecem estar muito para lá de todas as contrariedades e poder durar para sempre acabam por esmorecer e extinguir-se, em veloz ou prolongada agonia, com estardalhaço ou de mansinho.
Às vezes ainda se lhe viam restos de tristeza no fundo dos olhos, ainda havia aquela sensação de vazio e desamparo que em certos dias transbordava do peito, que lhe tomava conta das horas e lhe embaciava a vida, e as noites em que tremia de frio por dentro, mas sabia não ser senão  saudade de um tempo cada vez mais longínquo, a memória de um corpo quente que parecia queimar-lhe a pele ao mínimo toque, e a nostalgia do prazer a invadir-lhe todos os sentidos, misturadas com a angústia do caminho por vir.
No fundo sabia que permanecer refém do passado seria talvez um sinal de imaturidade; que como tanta coisa que simplesmente é assim e não consegue compreender-se, não adiantava prolongar o que já não existia a não ser na sua vontade, e até, se calhar, nem aí. Ficava-lhe o irrepetível de cada momento vivido e a beleza e a pureza daquela bonita história que só eles conheciam na totalidade; e mesmo sem saber o que esperar e ao que ir, entre medos, desejos e incertezas, antevia um mundo novo que tanto lhe parecia o abismo como logo depois a terra prometida.
E,  por mais que lhe custasse admiti-lo, constatava  a realidade do que lera uns dias antes: o amor é  como o pôr-do-sol. Pensamos que ainda o vemos quando já se foi.


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