quinta-feira, 30 de julho de 2015

Amores do passado


Tinham passado muitos anos. Nem queria fazer as contas para saber ao certo quantos seriam. Isso não lhe importava. Lembrava-se muito bem de quase tudo. Da amizade enorme, franca e genuína que existira entre eles. E daqueles amores desencontrados, como na Quadrilha de Drummond de Andrade: ela gostava dele, ele gostava de outra, que por sua vez gostava de outro, com quem casou. Eles não tinham casado um com outro, não tinham sequer chegado a ser namorados, mas falavam todos abertamente do que sentiam e de como o viviam. Eram felizes assim. Ela amara-o com loucura e com paixão, na ingenuidade de quem guarda em si todos os sonhos e ainda tem tudo para aprender. Conservara na cabeça, para sempre, o sorriso doce dele, que naquela altura lhe enchia o coração. E recordava os olhos escuros, enormes, o cabelo encaracolado onde tantas vezes quisera afundar as suas mãos, e as longas conversas em horas esquecidas, como se fosse eterno o tempo de estarem juntos e não houvesse mais mundo para além deles.
Lembrava-se sobretudo de umas férias da Páscoa que lhe tinham parecido o céu, passadas numa aldeia pequena do interior, de nome inteiramente em sintonia com a época pascal, e de como quase desfalecera de comoção na noite em que ele a tomou nos braços e encostaram os corpos e se deixaram embalar pela suave cadência da voz de Paul McCartney, que entoava yesterday, sem que ninguém pudesse adivinhar o turbilhão que lhe revolvia o corpo inteiro. E dos dias que passaram despreocupados, em risos e parvoíces, conversas sérias e confidências, silêncios e canções, cantadas em conjunto, ao som da viola, na alegria de estarem juntos e na confusão dos vinte anos. Nunca mais pudera esquecer de como então gostava de o ouvir cantar a noite passada, de como se derretia e deslumbrava quando o ouvia dizer: então tu olhaste / depois sorriste/ abriste a janela e voaste, mesmo sabendo que aquelas palavras não lhe eram dirigidas; e do beijinho de boa-noite que davam antes de dormir, e tantas outras pequenas coisas queridas que fizeram daqueles dias que viveram juntos o paraíso, tudo só pureza, emoção e sentimento, numa aldeia de nome doce, a saber a amêndoa.
Depois, o tempo e as voltas da vida afastaram-nos sem se saber quando nem porquê, como tantas vezes acontece mesmo com quem se quer bem; e até a amizade se perdeu pelo caminho. Vieram outros amores, mais concretos e carnais, apaixonados e intensos, felizes e infelizes, e aquele passado ficou arrumado num canto escuro e secreto do fundo do coração. Pouco soube do que foi feito dele entretanto.
Era estranho, por isso, (re)encontrá-lo agora, mesmo que fosse só virtualmente. De repente voltavam as memórias longínquas, adormecidas dentro de si, embora tudo fosse já muito diferente. Olhava-o na fotografia, grisalho, e apenas o sorriso era o mesmo de outrora. Às vezes pensava que gostaria de lhe falar, mas não saberia exactamente o que dizer, com tantos anos, e histórias, e vidas a separá-los, no eterno paradoxo feito de nostalgia e indiferença, fascínio e desencanto, e tudo o que é e não é, e se quer e não quer.
Agora já não adiantava pensar no que poderia ter sido se tivesse sido de outra maneira. Gostava de pensar que só acontece o que tem mesmo que acontecer. E agora, a vida tinha-lhe ensinado muita coisa. Por isso sabia que o tempo não volta atrás e que só o presente importa;  mas sabia, também, que os grandes amores deixam em nós uma marca que nunca se apaga; e que haveria de ter sempre por ele a mesma ternura um pouco pueril com que vivera aquela paixão aos dezoito anos.

2 comentários:

  1. A imagem é sedutora. E recordações longínquas,
    trazem à memória de quem lê ,os encontros e
    desencontros da vida.
    Obrigada.

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    1. Obrigada eu, Maria. É bom saber que a nossa voz encontra eco e suscita outros pensamentos, sensações, recordações.

      Beijinho e bom fim de semana. :)

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