terça-feira, 5 de julho de 2016

A minha vez


Quando eu era pequena, se estivesse doente, ficar na cama era obrigatório. Nada a fazer. Não podia sair dali até a febre passar e voltar a ficar boa. Ler também não era permitido, para não potenciar o cansaço. Havia, porém, nessas alturas de tédio, fragilidade e desconfortos vários, duas coisas que me deliciavam: folhear os álbuns de fotografias familiares que já conhecia de cor e ainda assim me encantavam, e a papa de banana esmagada com bolacha Maria e sumo de laranja que a minha mãe me fazia à hora do lanche. Mais que tudo, no entanto, era a sua voz e a sua presença que me reconfortavam e davam a certeza que daí a nada tudo voltaria à rotina habitual.
Hoje mudou tudo e os nossos papéis inverteram-se quase totalmente.  Hoje, sou eu que lhe faço a papa de banana com bolacha que ela come com o mesmo ar satisfeito que imagino que eu teria muitos anos antes; sou eu que lhe passo a mão na cabeça repetindo baixinho que está tudo bem; e lhe conto mil histórias sem saber se ela as entende, ou apenas a apazigua reconhecer-me o toque e a voz.
E se é verdade que há uma tristeza inerente à degradação do corpo e ao enfraquecimento de todas as capacidades, há também qualquer coisa de profundamente belo, e vitorioso, em chegar aos 91 anos, apesar de todas as limitações que tal implica. É por isso que, embora possa até parecer uma certa forma de egoísmo, continuo a preferir tê-la do lado de cá da vida, porque me tranquiliza a sua serenidade silenciosa e porque, no fundo, mesmo manifestando-se agora de maneira muito diferente, acredito que o nosso amor nos faz bem.

4 comentários:

  1. O amor é sem dúvida o que nos move nessa vida. Muito bonita a essência do seu texto.
    Abracz

    http://motivospelosquaisestoufelizhoje.blogspot.com.br

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  2. Claro que sim; sem amor a vida não tem sentido.
    Obrigada Núbia.

    Beijinho

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  3. É isso mesmo, Isabel. Quem me dera ainda ter a minha por perto.
    :)

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    1. Eu tenho bem a noção da benção que isso é, Luísa, apesar de tudo. :)

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